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Construindo a bioeconomia XX – A biorrefinaria de Pomacle-Bazancourt (França): algumas lições para a bioeconomia no Brasil

Este post é motivado por uma visita[1] realizada em novembro último ao site da ARD (Agroindustrie recherches et développements) localizado em Pomacle-Bazancourt, no leste da França. O site de Pomacle-Bazancourt é um dos principais exemplos conhecidos de biorrefinaria integrada. O que a sua estrutura e, principalmente, a sua história podem nos ensinar?

 

ARD e a biorrefinaria

Exemplos reais de biorrefinarias integradas são ainda bastante raros. Trata-se de um conceito em construção a desafiar as políticas públicas e estratégias empresariais voltadas para o desenvolvimento da bioeconomia. O complexo localizado na França, na região de Champagne-Ardenne, em Pomacle-Bazancourt, parece ser uma das melhores ilustrações de uma biorrefinaria integrada, tanto pela diversidade das unidades industriais, empresas e instituições envolvidas quanto pela história de seu desenvolvimento e das relações entre os variados agentes participantes. A figura a seguir apresenta as empresas e instituições presentes no complexo.

[1] A visita foi organizada pelo Green Rio e incluiu, além da visita à biorrefinaria, um seminário na OCDE sobre Agricultura Familiar, Pequenas Empresas e a Bioeconomia no Brasil. Agradeço ao Green Rio o convite para participar da delegação brasileira.

ARD é uma estrutura privada de pesquisa, controlada por players importantes do agronegócio francês e por cooperativas regionais de produtores agrícolas. Foi criada em 1989, quando parte do site industrial já existia, para explorar as oportunidades de valorização não alimentar das matérias-primas disponíveis na região. ARD faz parte do IAR, o cluster que estrutura e organiza o polo de competitividade em bioeconomia na França. BRI (Bioraffinerie Recherches et Innovation) é o hub que estrutura as ações de inovação no site.

ARD conta com apoio financeiro público do Ministério da Indústria da França, do Conselho Geral do Departamento de Marne, da região Champagne-Ardenne e da cidade de Reims. A combinação de cooperativas agrícolas e indústria privada, com o apoio de políticas regionais e nacionais, se apresenta como um modelo que poderia ser visto como uma referência para o desenvolvimento da bioeconomia em outras regiões.

As unidades industriais movimentam cerca de 4 milhões de toneladas anuais de biomassas (beterraba, trigo e alfafa) que são fornecidas por cerca de 10.000 produtores agrícolas da região. A área ocupada é de cerca de 260 hectares. O site gera 1.200 empregos diretos.

 Vivescia e Cristal Union são duas cooperativas principais que estão na origem do desenvolvimento do site e são as principais unidades produtoras. Air Liquide, ADM Chamlor e Givaudan são outros atores industriais integrados no site. Os principais produtos gerados são: açúcar, glicose, etanol para uso das indústrias de alimento e farmacêutica, etanol como biocombustível, amido, produtos para cosméticos, CO2 para a indústria de bebidas. O faturamento anual da plataforma industrial ultrapassa 800 milhões de euros.

As unidades industriais são integradas num modelo que tem sido denominado “simbiose industrial”. Nesse modelo além do compartilhamento de utilidades como energia, água, vapor e outros insumos, resíduos de uma unidade motivam o surgimento de novas unidades industriais que utilizam esses resíduos como matéria-prima. Essa estruturação tende a se tornar chave para a bioeconomia circular. O site é, nesse sentido, um dos precursores no mundo.

A estrutura em simbiose industrial pode ser encontrada em outros sites industriais no mundo. O site de Kalundborg na Dinamarca, que não é uma biorrefinaria, é o exemplo mais citado desse tipo de arranjo. Uma característica marcante, e provavelmente original, do site ARD/Bazancourt-Pomacle é a integração também com a pesquisa e desenvolvimento em bioeconomia. O site dispõe de infraestrutura para pesquisa em biotecnologia industrial e processos químicos que vai da escala de bancada e laboratório, passando pela escala piloto e chegando à escala de demonstração. A unidade de demonstração tem porte semicomercial e permite operar processos inovadores em escalas ainda de desenvolvimento, mas com volumes de produção para testes de uso e comercialização dos produtos. Esse tipo de unidade tem grande importância para os processos inovadores em bioeconomia, principalmente os baseados em biotecnologia. O investimento em unidades de demonstração é da ordem de dezenas de milhares de dólares.

A infraestrutura de pesquisa tem o suporte do CEBB (Centre Européen de Biotechnologie et Bioéconomie) que reúne, no site da biorrefinaria, um conjunto de universidades e escolas (Neoma Business School, URCA Université Champagne Ardenes, AgroParisTech e Centralesupélec). Importante notar que esse conjunto de instituições de ensino e pesquisa cobre todos os elos da pesquisa e desenvolvimento em bioeconomia.

A infraestrutura de P&D atende não só as empresas estabelecidas no site, como também atua como prestadora de serviços para outras empresas que se valem dessa infraestrutura para desenvolver seus processos. No primeiro caso, o desenvolvimento do processo Futurol de etanol 2G é um exemplo que merece ser mencionado. No caso de empresas externas que realizaram pelo menos parte do seu desenvolvimento no site, podem ser citadas Amyris, Bioamber e Global Bioenergies.

Como estratégia de crescimento, a estrutura da ARD procura se tornar uma oportunidade de surgimento de novos empreendimentos no parque tecnológico em desenvolvimento ao lado do site industrial, aproveitando os serviços e sinergias com as biorrefinarias.

Aspectos históricos:

Uma questão que naturalmente se coloca para os agentes públicos e privados é relacionada às políticas e estratégias que podem permitir a construção de ambientes de simbiose industrial como o de Pomacle-Bazancourt. Segundo, Pierre-Alain Schieb et al, autores do livro Biorefinery 2030: Future Prospects for the Bioeconomy, que descreve a história do site, o processo histórico de construção foi longo, e teria levado cerca de 70 anos. A estrutura atual é vista como resultado de respostas ao longo do tempo a questões de competição, regulações e de financiamento, decorrentes de organismos como a OMC e a PAC (Política Agrícola da Comunidade Europeia). As estratégias que levaram à estruturação do site industrial e da ARD foram, portanto, estratégias emergentes, em resposta às circunstâncias e adversidades, na busca de inovações que pudessem superar as fraquezas encontradas.

Naturalmente, esse processo não é facilmente replicável. Mas alguns elementos podem ser identificados como base desse processo histórico: o espírito de cooperação espelhado na atuação de alguns líderes-chave e na estrutura empresarial de cooperativas agrícolas. Além disso, a combinação de iniciativas privadas e políticas públicas bem desenhadas e implementadas tem destaque na história, apontando para o papel chave de modelos de parcerias público-privadas na estruturação desse tipo de empreendimento.

Reflexões para o caso brasileiro

O desenvolvimento de biorrefinarias integradas num ecossistema de inovação é visto hoje como um dos desafios mais importantes para o desenvolvimento da bioeconomia. Num trabalho recente, Innovation Ecosystems in the Bioeconomy, publicado pela OCDE, argumenta-se que a mera construção das unidades industriais, como as centenas de usinas sucroenergéticas e as dezenas unidades de produção de biodiesel existentes no Brasil, seria a etapa relativamente fácil do processo de construção de uma bioeconomia avançada. Os desafios estariam na inserção dessas unidades num ecossistema de inovação que pudesse garantir a inserção territorial das biorrefinarias e, ao mesmo tempo, articulasse as diversas etapas da cadeia de valor de modo a gerar resultados relevantes nas dimensões sociais, econômicas e ambientais.

A variedade das situações que se oferecem para o desenvolvimento da bioeconomia brasileira sugere igualmente desafios complexos a serem enfrentados. Basta comparar, de um lado, a estrutura já existente em torno da cana de açúcar e, de outro, o potencial, ainda não estruturado, das oportunidades da biodiversidade brasileira. E ainda poderiam ser mencionadas as inúmeras fontes de resíduos agroindustriais e urbanos que poderiam ser integrados na construção da bioeconomia.

Esses projetos apresentariam caraterísticas, em termos de acesso às matérias-primas, tecnologias de tratamento e conversão a serem utilizadas, tipos de produtos e modelos de negócios a serem implementados, bastante variadas. A caracterização dessa diversidade é possivelmente um esforço que os formuladores de políticas, as associações e agentes privados deveriam empreender e estudar como base para suas iniciativas.

De toda forma, como nos ensina a história e o desenvolvimento da biorrefinaria integrada de Pomacle-Bazancourt, sites dessa natureza não são fáceis de serem planejados. Mas não são também uma mera questão de sorte ou acaso. Uma sucessão de circunstâncias – oportunidades e ameaças – foi enfrentada e o resultado das ações dos stakeholders permitiu o crescimento do projeto em escala e escopo, gerando e usufruindo das sinergias entre os participantes.

Tentando extrair as lições principais do desenvolvimento da ARD, três condições podem ser consideradas como chave para qualquer esforço de criação de conceitos semelhantes de biorrefinarias integradas:

  • Desenvolvimento de atividades de pesquisa que considerem as particularidades regionais. Essas particularidades devem ser profundamente compreendidas já que afetam toda a estrutura da cadeia de valor: da natureza e estrutura de suprimento das matérias-primas à definição dos produtos, passando pelas tecnologias de tratamento e conversão. Os modelos de negócio deverão buscar formas de articulação dessas dimensões características de cada território. Um aspecto adicional e relacionado ao desenvolvimento das atividades de pesquisa é a formação de mão de obra especializada.
  • Envolvimento de agentes privados na forma de parcerias público-privadas, o que tende a exigir políticas públicas bem elaboradas e implementadas. Essas políticas devem permitir a construção de estruturas de governança que sejam estáveis mas abertas à inovação.
  • Atuação de agentes governamentais como intermediários entre os stakeholders não só para facilitar a estabilidade da governança, mas principalmente para favorecer as condições de cooperação e empreendedorismo entre os participantes do ecossistema. O papel dos agentes intermediários no desenvolvimento de ecossistemas de inovação é visto como chave.

Desta forma, o desenvolvimento e a estrutura da ARD e do site industrial de Pomacle-Bazancourt trazem à nossa reflexão alguns pontos centrais que podem ser úteis nas iniciativas de políticas públicas e estratégias para a bioeconomia no Brasil.